CAMPOS,
Ricardo. Introdução à Cultura Visual:
abordagens e metodologias em ciências sociais. Mundos Sociais: Lisboa,
2013.
Cap. 3 Cultura visual
O capítulo
discute a formação de uma cultura visual e de como a imagem e a visão
constituem-se, no presente, importantes alicerces para a forma como nos
comunicamos. Entre os estudiosos das Ciências Sociais em Portugal, esse advento da importância da imagem e da
visão é intitulada de “viragem cultural”.
Para o autor,
existem três concepções para cultura visual que serão apresentadas ao longo do
capítulo:
A primeira
diz que “Por uma cultura visual podemos entender uma área de investigação
relativamente recente, forjada a partir de uma grande amplitude de contributos
disciplinares e agendas acadêmicas” (p.51).
“Apesar desta
dispersão de abordagens, Rose (2001) salienta alguns pontos de convergência:
uma insistência no fato de as imagens produzirem efeitos (pois são elementos
poderosos); uma atenção particular ao modo como as desigualdades e diferenças
sociais são transportadas e reproduzidas via imagem; uma preocupação essencial,
embora não exclusiva, com os 'modos de olhar' social e culturalmente
contextualizados; uma ênfase na centralidade das imagens visuais nas formações
culturais mais amplas; a importância crescente da audiência enquanto agente
produtor de significado” (p.51).
“A noção de
cultura visual, numa segunda versão, endereça para uma arena específica de
realizações humanas, nomeadamente para o universo formado pelas linguagens e
bens de natureza visual” (p.51 e 52) ou seja, um campo específico da linguagem
visual, dos códigos e formas de comunicação e compartilhamento de conteúdos
visuais, que são influenciados pelo contexto social.
“Por último,
a cultura visual é, recorrentemente, invocada para adjetivar uma condição
civilizacional tida como intensamente imersa no reino da imagem” (p.52), ou
seja, uma característica de uma sociedade voltada para a imagem, como nos
falava Walter Benjamin em “A pequena história da fotografia”.
“Sugiro,
então, que consideremos os estudos
visuais (ou área disciplinar
de cultura visual) como território de investigação; a cultura visual como um universo
singular alojado num universo cultural mais vasto, constituindo-se como um
objeto de estudo suscetível de exploração; e, por último, cultura visualista como qualitativo” (p.52).
Abro aqui uma
reflexão em torno da divisão feita pelo autor: as três concepções não estariam
relacionadas? Como diferenciar a caraterística de estamos vivendo numa
sociedade permeada por imagens, com os usos sociais e coletivos de apropriação
e ressiginicação das imagens e com o campo de instigação?
Tendo em
vista que a segunda concepção é a compreendida pelo autor como a única que deve
ser nomeada de cultura visual, Eduardo Campos faz uma definição mais detalhada
do conceito: “A cultura visual é, em primeiro lugar, um 'repositório visual'
relacionado com contextos coletivos particulares, onde linguagens e signos
visuais são elaborados e trocados. É, em segundo lugar, um 'modo de produzir,
apreender e descodificar visualmente a realidade', tendo em consideração a
natureza social e psicossocial da percepção, da codificação e da representação
visual. Por último, é um 'sistema' composto por um 'aparato tecnológico,
político, simbólico e económico', enquadrado num horizonte sociocultural e
histórico mais amplo, com o qual convive, que ajuda a moldar, tal como é por
este configurado” (p.53).
A definição
acima mostra como a cultura visual passa por todas as três concepções, mas
também coloco em questão a forma como o autor trabalha a imagem como uma
representação da “realidade”. Primeiro, não é possível atingirmos a suposta
realidade, como diz Latour (Reagregando o Social), pois a imagem da coisa não é
a sua representação, já é outra coisa, outro corpo. Avalio ser este o grande
problema do livro em questão. Toda a concepção de imagem está baseada na ideia
de que ela é uma mimese do objeto “real”, sendo que, ao produzirmos uma imagem,
estamos criando um outro objeto, que possui uma relação com o outro que quis
representar, mas isto não quer dizer que ele consegue fazer uma representação.
Na imagem temos o sujeito que produz, sua visão de mundo, suas experiências
e temos o sujeito que olha e incorpora a imagem também em sua experiência, sua
projeção de futuro e temos ainda a própria imagem que se relaciona com as
outras e com objetos não humanos. Tudo isto, segundo a Teoria Ator-Rede
trabalhada por Latour, forma uma rede complexa, com inúmeras possibilidades que
tornam inviável pensarmos numa imagem como uma simples representação de algo.
Acredito,
entretanto, que Ricardo Campos avança ao falar que “poderíamos, por hipótese,
considerar a existência, num mesmo recorte sociocultural, de uma cultura visual
hegemónica convivendo com diversas micro ou subculturas visuais representando
propostas estéticas ou ideológicas alternativas, formas singulares, não
necessariamente antagonistas, de olhar e retratar visualmente o mundo” (p.54).
Sobre a
cultura visualista o autor fala: “As imagens e os objetos com vocação visual,
alojados em cartazes publicitários, turísticos ou políticos, na televisão e no
cinema, nos monitores de computador, nos transportes públicos ou na imprensa,
inundam o nosso ecossistema comunicacional” (p.54 e 55).
Sobre a
tecnologia o autor afirma: “a partir das reflexões de Arendt acerca do que esta
denominou a condição humana, argumenta que o fausto tecnológico deriva da
desmedida ambição de transcender continuamente os limites que nos são impostos
pela nossa humanidade” (p. 56 e 57), ou seja, a tecnologia como uma extensão
das nossas capacidades sensoriais.
“Engenhos
como o telescópio, a máquina fotográfica ou o vídeo dão origem a novos
processos sociais, científicos e culturais, fundam novas linguagens e vias de
comunicação” (p.57). Podemos relacionar estas novas formas de perceber o mundo
com o Benjamin chama de “inconsciente ótico” que é a possibilidade de vermos
algo que só é possível por meio da fotografia, pois ela ilumina os pormenores.
Depois o
autor vai falar da possibilidade de onipresença por meio das imagens, pois
podemos ter acesso a contextos diversos e que isto colocaria o indivíduo no
“reino do simulacro e da virtualidade”. Discordo aqui da concepção de virtual
como o sinônimo de “simulacro”, pois, como argumentei acima, a imagem não seria
a representação de uma coisa, ela já é outra coisa, não podendo a imagem ser um
simulacro, mas outra criação, o virtual, neste caso, existe em outra esfera,
não como representação, mas como uma outra “realidade”.
O autor ainda
discute a importância dos “média velhos e novos”, falando sobre a grande
quantidade de disseminação de conteúdos e a possibilidade de produção de
conteúdos por todos a partir do advento da internet.
Como
consequência disso o autor fala: “O conceito de competência visual, de acordo
com Muller, decorre da necessidade de pensar novas aptidões que resultam de uma
série de metamorfoses de natureza comunicacional, das quais a autora ressalta:
uma dispersão global de bens visuais; um incremento da produção visual de
natureza amadora; uma crescente descontextualização dos bens visuais por via da
globalização. Por conseguinte, tudo nos leva a crer que as novas gerações
desenvolvem especiais destrezas de ordem cognitiva, técnica e simbólica, de modo
a responderem a um campo visual em permanente e rápida maturação” (p.63 e 64).
Sobre a
globalização e sua relação com as imagens o autor resume: “Se, por um lado,
estamos todos um pouco mais próximos, partilhamos de forma mais ou menos
intensa de um 'património global', também é verdade que no interior das
fronteiras que percorremos a riqueza das composições sociais, demográficas e
étnicas continua bem viva” (p.70). Sobre como o global pode gerar um reforço do
local ver Canclini (Culturas Híbridas) e Hall (Identidade Cultural na
Pós-Modernidade).
Sobre
o consumo o autor afirma: “O poder das imagens e dos códigos visuais é assumido
como um fator vital na transmissão das mensagens e no estímulo ao consumo”
(p.73 e 74).
Ainda
sobre o consumo, o autor fala da rápida obsolescência dos produtos, da relação
lúdica que possuímos com os objetos, decorrente dos símbolos que eles “representam”
e da dimensão identitária do consumo.
Sobre
o corpo e a moda o autor diz: “A visualidade é mobilizada pelas pessoas com o
intuito, primeiro ou acessório, de comunicar algo sobre si, sobre aquilo que
são (enquanto pessoas singulares ou membros de um conjunto cultural mais vasto)”
(p.76).
“O
‘corpo-signo’ é consumido em imagens imaginários e produtos disponíveis no
mercado. Torna-se um alvo de investimento e engenharia, paradigma de uma nova
realidade que confere ao indivíduo liberdade para moldar o seu ‘eu’ físico e
psicológico, de acordo com aquilo que o mercado oferece e com os devaneios mais
peculiares” (p.77).
Sobre
essa capacidade de “moldar” o corpo com liberdade, primeiro devemos questionar
o próprio termo “liberdade”, como faz Baudrillard ao falar que a publicidade atua
como a estética que suaviza a estrutura da sociedade de consumo. Para ele, não
somos livres para ser, mas para consumir. Segundo, o corpo não pode ser visto
como uma armadura oca, como a do Agilulfo em “O cavaleiro inexistente”, de
ítalo Calvino. Em “A pele que habito”, Almodóvar faz uma interessante discussão
sobre o corpo como algo mais complexo e mesmo “moldado”, não conseguimos
escapar de um outro corpo que continua existindo por baixo da pele.
Ainda
sobre o corpo, o autor conclui: “Quer nas sociedades ditas tradicionais, quer
nas sociedades urbanas contemporâneas, o modo como o corpo é ornado tem sido
observado como um elemento fundamental na forma como as comunidades se
expressam simbolicamente e revelam afinidades grupais, de natureza étnica,
cultural ou social” (p.78).
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